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ALVARÁ DE SOLTURA

  ALVARÁ DE SOLTURA

  Por Fábio Moterani

 

No Fórum do Trabalho não se fazia outra coisa. O nome lhe fazia justiça. Sinfonia do dever a cada momento. O desafinamento surgiu de barulhento e inesperado assistente, atravessando a porta: “urgente doutor”.

A negativa foi peremptória: “não me é possível”.

– Vem de cima, contra-argumentou. O telegrama é patente.

– A competência. É grande o problema – exclamou.

– De tudo isso estão sabendo.

O detalhamento da situação demorou-se, como quem não se convence do mau augúrio iminente. Os tempos eram de escassos e precários meios de comunicação. De tão longínquo, era o único, a autoridade salvacionista.

– A Terra há de parar! A indignação estava pronta e acabada.

– Tudo de inusitado, doutor, pela reportação do acontecido no Fórum Criminal. Juiz não há para a ordem a ser cumprida. Algo raro, mas que pode acontecer de tempos em tempos, segundo afirmam os cientistas que estudam o movimento dos astros.

Não tão certo, não tão errado, rumou para o desconhecido, o fórum de parentesco distante. Descortinava o desassossego da inovação. Outra partitura e regência a ser realizada no escuro.

A cada lanço de escada vivenciava o ensimesmamento alheio. A cordialidade era sinal de guerra provável. O calor, o drama, a rotina e muitos papéis deveriam ser os vilões de tudo aquilo, o desalento das coisas em si.

A cada lanço, vacilação e incerteza. Não fosse de tão imperioso cumprimento do dever sacramental da consciência ordeira e progressista para uma construção justa e justíssima, mais, não fosse uma urgência urgentíssima dos postulados sagrados, segundo os quais manda quem pode e obedece literalmente o juízo, ah, ali não estaria. Não mesmo. As forças não eram ocultas, eram ostensivas.

Naqueles lanços que o ascendiam ao topo, melhor visão detinha da física forma da Justiça.

Tamanho desalento poderia ser questão de dinheiro. Por outro lado, a felicidade monetarizada tem prazo certo. Não era questão de salário. Em pleno inverno dos mármores daquele palácio, arriscava um colóquio consigo mesmo, a cada lanço.

Efêmera seria sua estada naquele local. Tempo e modo devidos, cabia-lhe o cumprimento da obrigação. Era questão de alma. Olhar firme, convenceu-se. Contudo, preocupado com o desnudamento que suas incertezas poderiam acarretar, calculou os passos verbais:

– Queira chamar o senhor meirinho. Estava a pessoa no corredor, contando e contabilizando incertezas.

– Por parte de quem?

A história é longa, pensou rápido, antes de responder. Se insistir em pormenores e explicativas, capaz de lhe ser segregado, mesmo porque nem sempre é possível explicar, convincentemente, sobre as coisas do céu. Recalculado o risco, resolveu ser breve:

– Sou juiz.

– Pois não, doutor. Eu mesmo. Peito estufado e prontificado.

– O cumprimento é de grande urgência. Explicou a autoridade.

– De que forma seria possível? Os postulados sacramentais estão em desalinho. Rebateu o soldado.

– Estudei uma brecha daqueles postulados específicos, tudo em nome do dever a ser cumprido pelo inusitado, porém, certeiro caminho da justiça. Replicou, ainda mais convicto.

– Em maiúscula? Arriscou o meirinho, esperançoso em compreender de qual tipo de justiçamento estavam falando.

A sobriedade calculada pela autoridade ali presente resultou um simples levantar de sobrancelhas. Coisa pouca, mas suficiente.

– Sim, verdade. Parece possível. Ainda assim – esfriou o colóquio – não depende apenas de mim.

Silêncio.

– A soltura deve contar com as formalidades do escrivão. Esclareceu.

– Assim se faça.

O caminho estava apedrado, como previu.

Desceram imensamente até alcançar a sala e, diante dos dois, o escrivão acenou com a cabeça, em sinal interrogativo, entre pilhas de autos de processos com capas rosadas e escurecidas pelo tempo. Pálido aspecto. Dali não saía há duas décadas, essa era a impressão inicial.

O caso foi explicado. Ficaram igualmente rosadas as suas bochechas. Tempos depois, em assunto geral de interesse coloquial, entre os transeuntes do átrio, funcionários, estagiários, advogados, além de partes e testemunhas corriqueiras naquele recinto, comentaram essa mudança física. Possivelmente pela justiça que se faria iminente. Nos colóquios travados a esse respeito não cogitaram se o justiçamento era na forma maiúscula.

– Imperioso. O meirinho antecipou-se.

Silêncio pelo doutor. A autoridade se fortalecia na palavra bem dita, que muitas vezes significa nada dizer. O silêncio acautelava o momento de alguma intrusa e maldita palavra, naquela invernal situação.

O escrivão mostrou interesse no argumento do entusiasmado meirinho. Sua mão apoiou-se no rosto. O guardião voltou sua completa atenção para ouvi-los, finalmente.

– É verdade que a competência é de duvidosa presença. Os postulados sacramentais indicam isso. Mas há brecha.

As palavras brecha, fenda ou rachadura soavam inusitadas, ainda mais para justificar o desiderato de urgente urgentíssima utilidade ao bom e melhor sabor do justiçamento.

– A fenda em rochedos traz a luz. Ainda que pequena essa fenda, diante de grande escuridão, grandiosa e significativa será o feixe iluminativo. Menos sombra, melhora a perspectiva, sem tropeços. O doutor quebrou o silêncio, com eloquência a olhos vistos.

– Justiça – acrescentou o meirinho. Pela certeza de suas palavras, não há dúvida, maiúscula. Avançou, corajoso em sua certeza: “se é uno e indivisível, o caminho é viável. Tudo em nome da eficiência. Os fins que se justificam”.

O apelo – antes mesmo da sentença – era realmente filosófico, apreendido de indemonstrável verdade, de tão verdadeira. A competência seria predestinação, precedente à forma e de soberano valor.

A soltura era iminente, tudo indicava.

Não era tão certo o sentimento dispersado no ambiente. Mas era certo que algo transcendente estava no ar, um valor de alta estirpe, apreendido, entre um argumento e outro, na expressão “liberdade”. Mais que um estado de espírito, a permissão para a prosperidade da alma.

– O escrivão olhou a seu redor, em momento de alta indagação. Não parecia duvidar do fim em si, proposto por ambos, à sua frente. Refletiu sobre a “liberdade”. Translucidou além do calabouço em que se encontrava. Tudo em pensamento, cujo efeito seria o abandono da palidez, dizem.

Ali estava a una, indivisível, demorada, mas cirúrgica Justiça. Interventora, redentora e salvacionista justiça.

O concerto estava bem afinado e harmônico. Palavras bem relacionadas e a partitura com razoável regência.

O escrivão convenceu-se plenamente. Quebrou o silêncio:

– O alvará de soltura será providenciado imediatamente, nos próximos 45 minutos. Enquanto isso, conduzirei V. Excelência ao gabinete. Há cinco mandados de prisão, aguardando a autoridade filosoficamente competente, tudo em nome dos postulados sacramentais do uno, indivisível e redentor justiçamento.

O escrivão mostrou-se um verdadeiro cirurgião, filosofou, ainda mais, o autêntico meirinho. E reconheceu: “o dia foi produtivo, enfim”.

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